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Dependência por Jogos Online: A Fuga Virtual e o Corpo Subjetivo





Os jogos online, outrora um nicho de entretenimento, transformaram-se em um fenômeno cultural e econômico de proporções globais. Com a ascensão dos e-sports, a ubiquidade dos smartphones e a crescente imersão proporcionada pelas tecnologias, os mundos virtuais tornaram-se espaços de socialização, competição e, para muitos, um refúgio da realidade. No entanto, essa imersão pode cruzar uma linha tênue, transformando o lazer em compulsão e a fuga em aprisionamento. A dependência por jogos online, reconhecida como "gaming disorder" pela Organização Mundial da Saúde, emerge como um sintoma contemporâneo que demanda uma escuta atenta, capaz de ir além do comportamento observável e alcançar as dimensões subjetivas e sociais que o sustentam. A psicanálise oferece ferramentas valiosas para essa escuta, permitindo compreender como o jogo se insere na economia psíquica do sujeito e o que ele revela sobre seu sofrimento.


## A Dimensão Subjetiva da Dependência por Jogos


Na perspectiva psicanalítica, a dependência por jogos online não pode ser reduzida a uma simples falta de autocontrole ou a um vício comportamental. Ela se enraíza em conflitos psíquicos e emocionais não elaborados, funcionando como um escape, uma tentativa de lidar com angústias, frustrações ou vazios existenciais. O mundo virtual do jogo, com suas regras claras, recompensas imediatas e a possibilidade de construir avatares idealizados, oferece um simulacro de controle e satisfação que contrasta com a complexidade e as incertezas da vida real.


A busca incessante por gratificação, característica marcante da dependência, reflete uma dificuldade em lidar com a falta e a espera. Os jogos são projetados para oferecer recompensas intermitentes, ativando circuitos de prazer no cérebro e criando um ciclo vicioso de busca por novas conquistas e estímulos. Essa dinâmica pode mascarar uma profunda insatisfação ou um sentimento de impotência na vida offline. Como observa a abordagem psicodinâmica, o jogo pode funcionar como uma defesa contra a depressão, a ansiedade ou sentimentos de inadequação, oferecendo uma realidade alternativa onde o sujeito se sente poderoso, competente e reconhecido.


A fantasia e a identificação com personagens virtuais desempenham um papel crucial nesse processo. O avatar torna-se um duplo idealizado, um veículo para experimentar identidades e vivenciar aventuras que seriam impossíveis no mundo real. Essa imersão fantasmática pode ser tão intensa que as fronteiras entre o eu e o personagem se tornam difusas, e a vida virtual passa a ser mais significativa e gratificante do que a vida offline. A função do jogo na economia psíquica é, portanto, singular para cada sujeito, mas frequentemente envolve uma tentativa de reparar falhas narcísicas, de negar a castração simbólica ou de encontrar um lugar de pertencimento e reconhecimento que falta no mundo real.


## Manifestações no Corpo Subjetivo


A imersão prolongada no mundo dos jogos online não deixa o corpo ileso. As manifestações físicas são frequentemente as mais evidentes: alterações no ciclo sono-vigília, fadiga ocular, problemas posturais, dores musculares, síndrome do túnel do carpo. No entanto, a perspectiva psicanalítica nos convida a olhar para além desses sintomas orgânicos e a escutar o que o corpo subjetivo expressa através deles.


O corpo, na dependência por jogos, torna-se palco de um conflito entre a exigência pulsional de continuar jogando e os limites físicos do organismo. A negligência com as necessidades básicas – sono, alimentação, higiene – revela a intensidade da compulsão e a dificuldade do sujeito em se desconectar do universo virtual. Em casos extremos, essa negligência pode levar à exaustão física e até mesmo à morte, como tragicamente noticiado em alguns casos de jogadores que passaram dias jogando sem interrupção.


Além dos sintomas físicos diretos, o corpo também pode expressar o sofrimento psíquico através de manifestações psicossomáticas. A ansiedade relacionada ao desempenho no jogo, o medo de perder ou de ser desconectado, a frustração diante das derrotas – tudo isso pode se traduzir em sintomas como taquicardia, sudorese, tremores, dores de cabeça ou problemas gastrointestinais. O corpo fala daquilo que a mente não consegue elaborar, tornando-se depositário de uma angústia que não encontra palavras para ser dita.


A escuta psicanalítica busca decifrar essa linguagem corporal, compreendendo os sintomas não como meros efeitos colaterais do jogo excessivo, mas como expressões de conflitos inconscientes. O que significa, para aquele sujeito, a necessidade de permanecer conectado por horas a fio? Que angústia ele tenta aplacar através da imersão virtual? Como seu corpo reage à tensão entre o prazer do jogo e as demandas da realidade?


## A Escuta dos Sintomas


A compulsão por jogos online raramente surge isoladamente. Ela frequentemente está associada a outras condições psíquicas, como depressão, ansiedade social, transtorno de déficit de atenção e hiperatividade (TDAH) e transtornos de humor. Essas comorbidades não são meras coincidências; elas apontam para a complexidade do sofrimento psíquico e para a função que o jogo pode desempenhar como tentativa de automedicação.


O sujeito que se refugia nos jogos pode estar tentando lidar com sentimentos de tristeza, vazio, inadequação ou tédio. O ambiente virtual oferece uma distração, uma sensação de pertencimento e uma fonte de autoestima que podem faltar em sua vida offline. No entanto, essa solução é precária e, a longo prazo, tende a agravar o problema, levando ao isolamento social, ao prejuízo acadêmico ou profissional e à deterioração da saúde física e mental.


A escuta psicanalítica busca compreender o que a compulsão por jogos comunica sobre o sofrimento singular de cada sujeito. Não se trata de julgar ou condenar o comportamento, mas de acolher a angústia que o subjaz e de investigar suas raízes inconscientes. Que experiências precoces podem ter contribuído para a dificuldade em lidar com a frustração ou em estabelecer vínculos satisfatórios? Que fantasias são mobilizadas no universo do jogo? Que lugar o sujeito busca ocupar nesse cenário virtual?


O tratamento psicanalítico oferece um espaço de fala e escuta onde o sujeito pode elaborar esses conflitos e construir novas formas de lidar com seu sofrimento. Através da relação transferencial com o analista, ele pode revisitar suas experiências passadas, ressignificar suas angústias e encontrar alternativas mais criativas e saudáveis para a compulsão pelo jogo.


## O Papel Social e a Dimensão Coletiva


A dependência por jogos online não pode ser compreendida apenas como um problema individual; ela está inserida em um contexto social e cultural que a influencia e, por vezes, a fomenta. Fatores familiares, como a falta de limites, a comunicação precária ou a presença de conflitos não resolvidos, podem contribuir para que o jovem busque refúgio no mundo virtual.


Além disso, a indústria de jogos e e-sports movimenta bilhões de dólares anualmente, exercendo uma pressão econômica e social significativa. A profissionalização dos jogadores, a espetacularização das competições e a promessa de fama e fortuna criam um imaginário poderoso que pode normalizar o jogo excessivo e dificultar o reconhecimento da dependência.


O impacto nas relações interpessoais é outra dimensão crucial. O tempo dedicado aos jogos frequentemente se sobrepõe ao convívio familiar, aos relacionamentos amorosos e às amizades offline. O sujeito pode se isolar progressivamente, perdendo habilidades sociais importantes e encontrando dificuldades em lidar com as demandas e os conflitos do mundo real. As comunidades virtuais de jogos, embora possam oferecer um senso de pertencimento, nem sempre substituem a riqueza e a complexidade das interações face a face.


A formação da identidade, especialmente na adolescência, também é atravessada pela cultura dos jogos. O avatar torna-se um espelho onde o jovem projeta seus ideais e experimenta papéis, mas essa construção identitária pode se tornar frágil e dependente da validação externa obtida no ambiente virtual. A psicanálise nos ajuda a compreender como esses processos se articulam com a constituição subjetiva e com os desafios próprios de cada fase do desenvolvimento.


## Abordagem Psicanalítica no Tratamento


O tratamento psicanalítico da dependência por jogos online busca ir além da simples modificação do comportamento, visando à compreensão das motivações inconscientes que sustentam a compulsão. O método psicanalítico, através da associação livre e da atenção flutuante, permite que o sujeito explore seus conflitos internos, suas fantasias e seus desejos, encontrando novas formas de simbolizar seu sofrimento.


A terapia familiar pode ser um complemento importante ao tratamento individual, especialmente quando se trata de crianças e adolescentes. Trabalhar com a dinâmica familiar, com as expectativas dos pais e com os padrões de comunicação pode ajudar a criar um ambiente mais favorável à mudança e a fortalecer os vínculos afetivos.


O estabelecimento de limites saudáveis com os jogos é um objetivo terapêutico fundamental, mas ele não pode ser imposto externamente. É preciso que o sujeito, através do processo analítico, possa reconhecer a função que o jogo desempenha em sua vida e encontrar motivação interna para buscar outras fontes de satisfação e realização. Isso envolve um trabalho de elaboração da falta, da frustração e da angústia, fortalecendo a capacidade do sujeito de lidar com as vicissitudes da existência sem recorrer à fuga virtual.


A relação transferencial com o analista é um elemento central nesse processo. O analista oferece uma escuta acolhedora e não julgadora, permitindo que o sujeito se sinta seguro para explorar seus aspectos mais vulneráveis. Através da transferência, o paciente pode reviver e ressignificar padrões relacionais antigos, construindo novas formas de se vincular consigo mesmo e com os outros.


## Considerações Finais


A dependência por jogos online é um sintoma complexo da contemporaneidade, que reflete tanto fragilidades subjetivas quanto pressões sociais e culturais. A busca por um equilíbrio entre o uso recreativo e a compulsão patológica exige uma abordagem que considere a singularidade de cada sujeito e a complexidade dos fatores envolvidos.


A psicanálise, ao oferecer uma escuta atenta ao inconsciente e às manifestações do corpo subjetivo, pode contribuir significativamente para a compreensão e o tratamento desse fenômeno. Ao invés de focar apenas na supressão do sintoma, ela busca desvendar seu sentido e sua função na economia psíquica, abrindo caminho para transformações mais profundas e duradouras.


Compreender a dependência por jogos como um sintoma de questões sociais mais amplas – como a busca incessante por prazer imediato, a dificuldade em lidar com a frustração, o isolamento social e a pressão por desempenho – nos permite ir além de uma visão individualizante e patologizante. Trata-se de reconhecer que o mal-estar que se expressa através da compulsão pelo jogo é também um reflexo das contradições e dos impasses da cultura em que vivemos.


A psicanálise, nesse sentido, não oferece soluções mágicas ou respostas prontas, mas um convite à reflexão e à elaboração. Um convite para que cada sujeito possa se interrogar sobre seu desejo, sobre sua relação com o prazer e com a falta, e sobre o lugar que os jogos – e as telas em geral – ocupam em sua busca por sentido e satisfação na era digital.


## Referências


1. Psicologia USP. "Transtorno de Jogo: contribuição da abordagem psicodinâmica no tratamento". Disponível em: https://www.scielo.br/j/pusp/a/38kVN5gQbhRnRcb6Ry6yn9r/

2. Revista FT. "O transtorno dos jogos e seu impacto na mente". Disponível em: https://revistaft.com.br/o-transtorno-dos-jogos-e-seu-impacto-na-mente/

3. King, D. L., & Delfabbro, P. H. (2018). "Internet gaming disorder: Theory, assessment, treatment, and prevention". Academic Press.

4. Kardefelt-Winther, D. (2014). "A conceptual and methodological critique of internet addiction research: Towards a model of compensatory internet use". Computers in Human Behavior, 31, 351-354.

5. Lacan, J. (1964/1988). "O Seminário, livro 11: Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise". Rio de Janeiro: Jorge Zahar.

 
 
 

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